AS MINA PRETA UM PASSO A FRENTE! O protagonismo de Stephanie Catarino

Ela tem 23 anos, formada em História atualmente estuda Arqueologia. Moradora do Alto da Riviera, Jd Angela Zona Sul de SP, apresenta o programa "Aonde é o Rolê? onde divulga via web a cena cultural e artística da periferia de São Paulo.
Além de toda essa caminhada ela ainda tem uma coisa que já ficava clara nos vídeos, mas ao entrevistá-la ficou ainda mais evidente e me surpreendeu! Ela tem aquilo que muitos chamam de carisma, mas eu chamo de Dendê... e sua imagem de aparência frágil logo se desfaz quando ela solta a voz.
Nessa entrevista ela abre o coração e fala sobre empoderamento, disputa de espaço, relacionamentos... de uma forma clara e sincera.
Senhoras e senhores, Stephanie Catarino.


O começo do programa Aonde é o rolê?
Começou meio por acaso. Eu trabalhava com produção de eventos e fazendo flyers de divulgação do evento eu não conseguia atingir uma galera legal... tive a ideia de fazer um vídeo com a câmera do celular. Fiz o vídeo, editei online, bem amador mesmo e soltei no facebook, e sei lá...teve 900 visualizações em um dia; Vi que o vídeo funcionou e rolou super legal e pensei: Porquê não investir nisso!? Continuei fazendo os vídeos pra divulgar.
Minha ideia no começo era só fazer a divulgação, nem era fazer entrevista, por isso digo que foi por acaso. Eu queria um recurso mais profissional, mais bonitinho e por isso eu chamei uma galera que topou, mas tem essa questão de ter um equipamento bom, áudio, câmera... Eu vi que sozinha eu não ia conseguir mesmo porque não tenho 12 pau pra dar numa câmera. Bom... aí eu tive a ideia de escrever um projeto que foi pelo Programa VAI. O projeto foi contemplado compramos o que precisava comprar, e chamamos as pessoas que precisava chamar e que entendiam de audiovisual. No primeiro dia eu tive a ideia de fazer um vídeo perguntando pra galera como estava a cena cultural da Zona Sul, isso me colocou como apresentadora e começou a fluir. Foi em 2015 mas pra mim parece que foi ontem, sabe?
Quando você se viu apresentadora... você acha que passou a ter um a responsabilidade por estar em frente a câmera?
Sim! Total, total. Estava até comentando com uns amigos que o Aonde é o Rolê, por ter um formato de programa web, ele é um espaço de fala; eu falei isso relacionado a uma outra questão minha, que é a questão da neutralidade... não dá pra ficar neutra, eu me vendo como apresentadora, como negra e periférica, automaticamente minhas questões de mulher negra periférica vão falar mais alto, então automaticamente vou querer fazer com as pessoas negras e periféricas. Isso é muito forte! Não existe essa parada de ser neutra por que estou a frente, eu sinto essa responsabilidade, e talvez seja por isso que eu fico podando algumas coisas, assim sabe? Tipo, seria legal se eu fizesse determinado vídeo com tal pessoa, mas aí eu penso: a pessoa teve uma ideia zuada em tal tempo... não vou conseguir falar da arte da pessoa como se nada tivesse acontecido; Sei lá... o cara violentou uma mina, eu não vou conseguir falar da arte do cara sabendo que ele fez isso com uma mina, com uma parceira, que mora na periferia, que frequenta os mesmos lugares que eu!
Essa é a responsabilidade que eu sinto.
Continuando esse lance que você falou do fato de ser mulher de ser negra... Quando você descobriu que era negra?
Nossa! Que interessante. Me descobri como negra em 2012, 2013... ó que tarde! Foi em 2013 mais ou menos. Já tinha todas as questões que ficam na gente tipo, escola, trampo, relacionamento pra caraaaalho! Acho que o primeiro impacto que a gente tem é quando se relaciona com alguém.
Por que?
Por que ser mulher negra é diferente de ser homem negro, tem essa questão bem forte. O homem negro não entende completamente as nossas dores, por que tem também uma questão social, tem aquela pirâmide como se fosse uma pirâmide de cor, né!? Que a mulher negra tá sempre abaixo do homem negro. Até 2012, 2013... eu tinha uma visão da mulher negra ser sempre a outra, a mulher negra não era boa o suficiente, boa pra ficar com o homem negro... por que se o homem já é negro e ele ficar com uma negra, faz ele se sentir mais inferior, então ele ficar com uma mulher branca, com uma loira, faz ele ser o Óh! Tô com a loira!
Mas isso era uma coisa que você pensava ou você vivia?
Era uma coisa que eu pensava. Que eu pensava e sentia, acabava vendo nos relacionamentos na minha própria família, e sempre via a mulher negra como a outra e não tinha mentalidade pra levantar essas questões...
por que os homens negros não querem ficar comigo? E porque os homens brancos só querem ficar comigo pra zuar? Ficar comigo como amante. 
Eu não tinha essa mentalidade e não tinha pessoas próximas a mim que me fizesse pensar essas coisas, eu sempre sentia a rejeição, mas aquela rejeição assim que eu senti e guardei... senti, guardei vou pra casa e vou chorar porque hoje eu me senti rejeitada pelos meninos negros da escola, pelos homens brancos da escola. Era essa a sensação.
Na minha casa não foi forte essa questão da mulher negra, do homem negro, da negritude. Não foi forte. Meus pais são negros mas eles sempre me falavam: "tem que estudar, tem que estudar, porque tudo pro negro é mais difícil".
Essa consciência eles te passaram...
Eles me passaram. Pra eles era mais importante as vezes eu conseguir um emprego do que um curso de graça no SENAC... "Tá, mas esse curso de graça vai te levar aonde você precisa de um emprego, de carteira registrada. Essa era a ideia.
Esse é um pensamento bem comum dos pais da periferia... E quando que deu o click?
Engraçado o que eu vou falar agora... Em 2012 eu ainda estava no colégio, no ensino médio, eu comecei a me aproximar das Ciências Humanas e comecei a gostar de Filosofia, Sociologia, História, dentro disso eu comecei a desenvolver um pensamento crítico, comecei a ler muita coisa, porque muita coisa não chegava e eu queria saber. Tive a sorte de encontrar vários professores que eram de periferia também e sentiam em mim essa necessidade, essa busca por algo mais, não estava conformada. Esses professores foram me indicando várias leituras e eu fui começando a entender... Um processo dentro de mim.
Nesse mesmo ano eu fui pra Cooperifa, comecei a conhecer os saraus e vendo outras mulheres negras declamando poesia eu falei putz! Que lindo isso, como elas conseguem? Aí despertou essa coisa em mim também, vou escrever também, por que acho que se eu escrever rola alguma coisa, algum efeito. Foi despertando isso em mim, mas me reconhecer como negra mesmo só depois que eu conheci algumas mulheres negras que falavam algumas coisas que, pera aí... eu já passei por isso, eu já senti isso.
Isso ficou mais forte em mim e eu até falei que é engraçado; Eu tinha uma pegada de entender os relacionamentos como... eu não quero ser mais uma, não quero ser usada, todo mundo quer ficar brincando com as mina preta. Os caras preto não fecha com a gente, os homens brancos fecham com as loiras, também não vai fechar com a gente. Eu falei meu, não preciso disso! Foi bem nessa fase de paquerinha de ficar apaixonada, eu fui me relacionar tarde até os 15 anos eu não queria nem saber, meio que me bloqueei... 
esse bagulho de amor não é real, pelo menos pra mim preta.
Casamento, casa, filhos, não existe, se pra pessoas muito próximas e na própria família não rolou, por que pra mim ia rolar? Mas passando esse período eu comecei a me relacionar e justamente com um homem branco, e isso por incrível que pareça, me ajudou a entender quem eu era dentro disso, por que a gente se deparava com várias situações que me fazia pensar, putz... isso não é legal, isso tá errado! Foi aí que eu fui entendendo. Conheci outras pessoas, outras mulheres e aí que entendi a questão da mulher negra, foi foda, mas hoje eu consigo me distanciar e me enxergar como mulher fora da relação.
Você se formou em História né?
Isso. Me formei em História.
Quando você pegou seu diploma você fez o gesto dos Panteras Negras?
Na verdade foi antes, a gente pensa em estudar e tal, mais meu processo de estudo foi bem conflituoso eu digo na faculdade mesmo porque a gente só recebe as coisas... leituras e autores, e aí você percebe que os autores que vem são homens, são brancos, quem tá ali na frente no lugar de poder são homens, são brancos... Quem vai falar da história da África são homens, são brancos; Você fica num processo... eu quero estudar, eu quero saber, mas eu não quero saber por você, mas enfim, se você não frequentar a faculdade você não vai ter o direcionamento, e aí durante a faculdade toda foi resistência por ter professores brancos, por ter colegas brancos e várias questões que me fizeram ter vontade de desistir, mas eu não desisti e aí quando eu cheguei no dia da minha colação eu me vi em um lugar onde a maioria era branca (até tinha pessoas negras mas não se reconheciam como negras), então me vi como a única negra naquele lugar, eu vi minha família como os únicos negros daquele lugar e eu me vi como uma mulher de periferia quase que única naquele lugar, aí pensei vou entrar e só vou entrar? Não.
Deixar minha marca né!?
Num é!? E aí eu entrei e não foi uma coisa planejada. O mais louco é isso, que eu tava entrando e de repente foi no estalo... vou fazer! Só que quando eu pensei vou fazer, já estava fazendo.
E aí foi isso, eu fiquei super emocionada naquela hora com minha família gritando e tal, com minha mãe lá, que muitas vezes minha mãe não entende qual que é esse processo e muitas vezes ela falou "Minha filha tá fazendo... o que você tá fazendo mesmo? Filosofia é isso? Um negócio lá, uma faculdade que ela faz", não mãe, faço história... é história, minha filha faz um negócio aí, sabe? Até minha mãe as vezes não entende o que você ta fazendo ali... " não sei, mas é minha filha (som de palmas) ela chegou lá"
E esse gesto causou?
Causou. Tiveram bastante olhares por parte dos professores que estavam na banca, eu senti alguns olhares de... 'ela ta formando e é isso aí', mas também senti olhares do tipo... 'o que ela ta fazendo?', outros de indiferença e silêncio, mas pra mim foi importante, natural, sem pensar.
Você já falou da importância de estar a frente de um programa que fala da quebrada... e qual é o papel da mulher na mídia independente? Por que os coletivos de mídia independente tem que ter a presença e a contribuição feminina?
Eu acho que é super importante. Como eu falei sobre esses espaços que são ditos de poder. Com certeza, eu falo abertamente, com certeza se essa ideia do projeto não tivesse sido minha, não seria eu mina preta que estaria apresentando... isso é óbvio. Se eu tivesse de repente... putz tive uma ideia de fazer um programa que fale das quebradas, beleza, vou chamar você pra fazer comigo e fulano de tal. Construir esse projeto junto com vocês, com os caras, seria outra ideia... Como minha ideia já estava estruturada e eu só chamei as pessoas profissionais pra trabalharem comigo, eu tive a total liberdade de ser apresentadora, se não seria qualquer outra mina branca. Pode apostar, seria!
Mesmo os caras da quebrada...
Mesmo os caras da quebrada teriam escolhido qualquer outra mina branca. E digo mais, teriam escolhido uma mina talvez mais conhecida dentro do cenário cultural... tem essa parada e se você parar pra pensar são sempre as mesmas pessoas que fazem roles diferentes, mas estão sempre em conjunto, parece que é um grande coletivo. Não que isso seja ruim, mas eu também não vejo só como uma coisa boa, porque meu, tem gente pra caramba, fazendo várias coisas, muita gente boa.
Sobre a presença da mulher eu acho demais, mas também eu fico um pouco preocupada... as pessoas vêem o Aonde é o Rolê e é nítido que a maioria das pessoas que eu entrevisto são homens, mas não é uma questão pessoal porque se fosse eu só ia fazer com mina preta, a real é essa, mas eu entendo que para além de mulheres pretas fazendo arte e cultura, tem também mulheres brancas, homens brancos, homens negros... e a ideia não era aonde é o rolê negro, era onde é o rolê de artistas, mas também tem essa questão de ter mais homens por que são espaços de poder, espaço de fala onde você vai ser ouvido por várias pessoas...
Você fala de um processo até de rejeição dos homens por você ser negra... E depois que você estava lá com vinte mil acessos, no vídeo, no poder com o mic na mão... E você me disse que aumentou muito o número de seguidores homens e que você acredita que muitos estão mais interessados em você do que no que você tem a dizer. Fala um pouco disso.
A maioria é homem, a maioria não está interessado no que você faz. A maioria vê você fazendo o negócio e 'nossa que legal, é mulher, melhor ainda!' Como o programa acontece pela rede social, facebook e tal, vem de tudo... pode acreditar, vem de tudo, as coisas mais absurdas. No início foi difícil lidar com isso, por que em um dia eu estava fazendo meu trampo normal e no outro dia eu tinha 150 solicitações de amizade e 200 mensagens. Não é exagero falar isso, mas eu fiquei um pouco preocupada porque eu não soube lidar, eu simplesmente saí adicionando todo mundo: nossa que legal as pessoas querem ser meus amigos, bacana! Saí adicionando todo mundo, saí olhando todas as mensagens, respondi as pessoas... Depois eu percebi que tinha umas coisas veladas tipo: "nossa seu trabalho é bacana, você é formada? você mora aonde? Você namora? me passa seu wattsapp"
Agora óbvio que eu tô muito mais ligada e esperta, acho que eu tinha que ficar esperta desde o começo mas as coisas não são como a gente quer né? Tem muitos seguidores legais, bacanas que dá pra fechar parceria, que dá pra ser amigo e trocar wattsapp, fazer rolê, colar no sarau... 
mas tem muita ideia errada, muita ideia torta, já chegaram mensagens de caras brancos dizendo 'adoro as pretas, posso estar com você se você quiser'. É foda! 
É foda... mas hoje to muito mais esperta e seletiva e acho que foi bom passar por isso no programa, acaba servindo pra vida.



Qual o futuro do Aonde é o Rolê?
Eu não sei, por que o audiovisual é da hora mas custa caro pra caralho! Eu não sou dessa área, eu fiz História e to fazendo Arqueologia agora, que é completamente de pesquisa, de campo social e eu não sei o que vai ser do Aonde é o Rolê sem esses recursos... sei que a gente não tem essa grana mas sinto que não pode terminar! A mesma paixão que eu tive quando comecei, quando eu pensei e desenvolvi, eu consegui passar pras pessoas que trabalham comigo hoje.
Quantas mulheres tem na equipe?
Só eu. Porque quando eu tive a ideia falei com muita gente, inclusive com as minas, mas a galera que comprou a ideia e me apoiou foram todos homens... desde o momento que eu escrevi, fiz orçamento, os caras se reuniram comigo e me deram toda força. Tem hora que é foda você só trampar com homem e ainda os rolês serem feitos a maioria por homens... Aí que você tem que ser resistência mesmo.


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