Projeções alucinógenas em uma noite marginal

Ao abrir os olhos avistamos o mar por trás de um vidro empoeirado. O sol escaldante fazia aumentar a leseira. Os ciclistas passavam e nos encaravam com aquela dúvida. Estão mortos ou é aquela sincera ressaca matinal? De qualquer forma não aguentaríamos muito tempo ali dentro do carro, o odor era cada vez mais forte, em uma indigesta mistura de bafo, álcool, meia suja, um pouco de ácido, farinha, ganja e tomate seco.

Saímos de São Paulo prontos para um bate-volta na cidade de Santos em busca de uma brisa litorânea ao som e imagem da abertura do festival de cinema Curta Santos. Preparamos algumas long necks no gelo naquela térmica de peru do natal e partimos. A neblina pelas curvas da estrada impediam a vista do horizonte. Na baixada, a bela natureza do Brasil era atropelada por arranha céus ao mesmo tempo em que o mar se escondia atrás da infinidade de containers coloridos. Ali dentro somente coisas “legais”, diversas marcas famosas produzidas por trabalhos escravos ao redor do mundo, algumas notas falsas e claro.. dorgas!

Enfim a praia! Depois de algumas voltas... breja e fumo... entre um e outro em um banco em frente ao mar a capacidade de percepção ampliava didaticamente. Pôr do sol atrás do navio, ponte de concreto na areia que não leva a lugar nenhum, grupos de playboys cantando Racionais MC's, cachorros, bicicletas, corrida...

A onda já estava propícia para um festival de cinema praiano. Com uma mão no volante e outra na cerveja, seguia cuidadosamente rumo ao centro velho de Santos. Uma rua vazia ao lado da praça.. perfeito! Estacionamos ali com um certo orgulho de quem encontrou o melhor lugar da noite. Do nada um segurança corre atrás de nós, com aquela arrogância de que tem o poder nas mãos e um poderoso apito supersônico na boca, nos indica a saída... Estávamos dentro do terminal de ônibus.


Ao colocar os pés na praça, as luzes se apagam. Mandinga, magia, falta de energia? Um senhor com pinta de cineasta, pouco cabelo e explicitamente desejoso de nossa cerva, se aproxima querendo saber a procedência para adquirir a sua também... o que até então ele não sabia mais logo soube, é que aquela garrafinha viajou bastante pra fazer parte daquele evento, e o que nós não sabíamos e que ao fim daquela garrafa saberíamos, que em meio a penumbra da sua arquitetura antiga, o que o caminho de busca da próxima rodada escondia e evidenciava... “sexy” sombras se movimentando lentamente pra não virar cenário, fumando seu cigarro para não ser um mero decorativo de submundo, gerando calor a quem pudesse pagar e escolher entre mulheres e bonecas. Não havia preparo mais adequado pra um festival que homenageia o cinema novo organizado por críticos das políticas culturais e de todas as contradições políticas/sociais da baixada.


Ganja, pango, djamba e projeções totalmente sincronizadas criavam a magia do cinema em praça aberta. Das janelas surgiam um balé marginal de anjos sem gênero, um convite para festa dos inclassificáveis. O povo sede ao chamado dos bailarinos, enquanto movimentavam-se em uníssono ao som amplificado.

Leves e prontos... no meio daquela praça acendemos mais um fumo, e quando dropamos naquela onda... Fomos parar na cadeia!

Entre grades e fumaças de cigarro damos de cara com a musa do cinema marginal, Helena Ignez. Em uma conversa rápida... Amnésia. A única frase que ficou na cabeça junto daquela brisa toda “se quiserem me encontrar, estarei aqui a semana inteira”.

Fotografias intensas, cenas lentas e cortes rápidos nos petrificava diante de imagens alternadas do cinema novo e do novo cinema. A qualquer momento poderia surgir o bandido da luz vermelha de Nike Shox e tudo se transformaria num clipe do Kondzilla, com uma trilha sonora ao vivo de uma espécie de Janis Joplin brasileira.

Quando parecia o fim, saímos da cadeia e voltamos pro breu da praça onde éramos apenas sombras soltando fumaça... Fomos presenteados com um violinista magrelo com boné de skatista salvando o seu parceiro de violão e melhorando aquela velha música gringa tocada insistentemente nas rádios nacionais. Pareciam clichês inéditos na trilha sonora da viagem.


Ali, onde tudo começou se encerrava a abertura do festival de cinema Curta Santos. Era só o primeiro dia. A vontade de ficar a semana toda e assistir todos os filmes que seriam exibidos gratuitamente só não era maior do que a vontade da saideira. No posto, enfrente aquelas geladeiras multicoloridas por garrafas, (a coisa mais linda) perguntamos ao frentista onde poderíamos encerrar nossa saga com a digna saideira... Prontamente começou a nos apontar os puteiros mais próximos que variavam de 80 a 100 conto, que no nosso caso não fazia a mínima diferença, o lance era breja barata.

Quando a fagulha da consciência voltou, estávamos dentro do carro em frente a praia com o sol nos acordando para alívio dos ciclistas que acreditaram que já tínhamos morrido na noite anterior.

Já que estamos vivos... bora botar o pé na areia e beber umas brejas para curar a ressaca na maresia!



Por Fagner Branco e Fábio Feijão
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