Estourei no Norte: entre redes pelo rio Amazonas



Eu abria os olhos e via um relógio redondo, formato bem tradicional. Só seus ponteiros andavam. Eu estava parado na rodovia Bandeirantes, dentro de um ônibus em um dia chuvoso. Essa foi a calorosa recepção paulista, após vinte dias entre o Pará e o Amazonas.

Depois de uma semana em Alter do Chão (PA), num clima bem tranquilo e familiar com amigos, cachorros, amigos cachorros, música brasileira e maconha sem miséria, fomos pra Santarém pegar um navio até Manaus.
Em outro momento eu conto sobre Alter do Chão e Santarém. A viagem de navio é uma experiência merecedora de palavras, dedicadas somente a ela e a surpreendente força doce e barrenta do Rio Amazonas.

Você tem duas opções ao comprar as passagens: ou vai de lancha, onde são doze horas de viagem, ou entra em um navio e só sai de lá dois dias depois. O navio é enorme e tem um nome horrível, do tipo "Golfinho 3" (fosse Boto tinha mais a ver com a região), mais ainda não é o que mais chama atenção no porto, pois temos a monstruosa presença da Cargil, representando toda força e poder do capital através do escoamento de grãos da região centro oeste do Brasil, mais especificamente Mato Grosso. Isso! Lá onde se mata e se desmata, pra que a Cargil e outras multinacionais possam imperar no nosso território.

A parte de baixo do navio transporta mercadorias, carros, motos e muitas caixas, principalmente de alimentos. Temos mais dois andares onde as pessoas disputam espaço para poderem amarrar as suas redes. Muitos optam por chegar cedo e se armar logo em um lugar que considere bom, outros já chegam no limite da hora e por falta de opção e espaço, armam suas redes praticamente em cima das que já estão armadas, ou seja: "tamo junto"... literalmente.

A rede é peça muito importante na cultura Paraense, e jamais viaje pelo Pará sem levar a sua, comprar uma por lá também é uma boa e muito fácil de encontrar. A minha, armei próximo a um casal bem novinho que dividia uma rede... Quando eu digo próximo quer dizer encostado, bem juntinho, arrochado...

Enquanto o navio não sai, o comércio é intenso, principalmente com extensões para manter seu item indispensável de sobrevivência, entretenimento e fetiche carregado, nas tomadas que ficam no alto das redes... Também se vende muito marmitex e corda.
Na parte superior tem um barzinho e dá pra curtir um sol e até fumar um cigarro... Lá passou a ser o meu lugar preferido, e nem as músicas que se repetiam a cada duas horas (que são as mesmas que tocam no país inteiro naquela pegada da massificação do mercado fonográfico) me tiravam de lá.

Assistia a manobra do Navio, como quem estava sentado em um bar vendo atentamente alguém fazer uma baliza bem apertada. E finalmente se vai, e como sempre quem vai deixa algo, e segue. No caso seguíamos pra Manaus...eu não deixava nada e ninguém, e acho que eu nem estava indo pra Manaus. Era só a continuidade da minha vida que pode acabar antes desse texto ser publicado, na mão da maior bacia hidrográfica do mundo. Essa sensação me era confortável e comecei a beber.

Famílias contemplam a paisagem e cuidam dos seus pequenos, eu estava mais preocupado em filosofar sobre a vida com meu camarada e tomar a próxima. A maioria das pessoas mal saem das suas redes a não ser pra irem ao banheiro e se alimentar. Passei a tarde por ali tomando uma enquanto o cenário permanecia o mesmo por horas; É a transa dos meus olhos em transe com o Amazonas, num estado meditativo, dissolvendo tudo que até então fazia sentido, pra um universo tão limitado e egoísta que só pode ser uma pessoa.

Se unem a nós mais dois companheiros, e mais conversas e árvores caídas no rio ou torradas por raios. O bar fechou e a moça educadamente pediu pra que descêssemos, pois não podia permanecer ninguém naquela área do navio sem a presença de funcionários. Descemos, e em seguidas subimos com o baseado no jeito de tacar fogo, pois sem funcionários e luzes apagadas, é fogo!

Fomos pra rede e no balanço do navio e no verde dos sonhos, eu pego no sono, e na correria de descer as lonas pra conter a chuva eu acordo. O medo de molhar minha rede era maior do que do navio dar defeito, mas a lona foi suficiente pra conter a água e pude dormir mais um pouco. Ao acordar a maioria das pessoas permaneciam em suas redes, enquanto eu procurava minha toalha comecei a observar o casal do meu lado... Estava tão gostoso os dois ali, em um embalo bem pouco da rede, que me deu uma certa inveja. Tantas palavras sujas de ódio já saíram da minha boca, e tantas cenas de horror já entraram pelos meus olhos, que talvez eu não tenha mais o hálito pra dar um beijo de paixão adolescente pela manhã, abrir meus olhos, apertar o abraço sem acordar o outro, fechá-los novamente. Talvez tentativas, onde o ego sempre está entre o casal e é sempre calor demais pra dividir uma rede.


Aproveitei que era bem cedo e fui raspar minha cabeça sem que ninguém incomodasse batendo na porta do banheiro. O banheiro tem um cheiro de sapo, é todo de ferro e bem úmido... Água quente nem pensar. O outro dia é a mesma coisa, só que além de beber muito mais, vi uma cena que já havia visto antes e que é impossível de se acostumar... Indígenas em pequenos barcos a remo se aproximando do navio pra pedir esmola. São em sua maioria crianças!

Com uma lata na mão e um risca faca na cabeça, olhando fixamente pro rio sou presenteado pela presença do boto, que sua beleza não seduz pra distração da situação dos povos da floresta, que ainda tá aqui guardado com minha revolta e todo desamor que o mundo oferece todo dia.

A noite veio. A moça repetiu o processo de retirada dos últimos bêbados, que novamente voltaram na calada da madrugada pra fumar aquela ponta.. e no dia seguinte... estamos em Manaus. O glamour e conforto não existem... a beleza da viagem está no rosto do povo e no contato com tudo aquilo que não é nosso. São aqueles cabelos pretos e o cheiro das marmitas. A cor do Acaí sem xarope no saco transparente e o rastro de farinha grossa no canto da boca da menina de olho puxado. O preto do olho do camarão seco e seus longos bigodes, apontando pra uma casa na floresta que só vai se avizinhar com outra a quilômetros.

Estava com grandes companheiros e, diante daquele todo, também fomos beleza em detalhes.. E na minha eterna insatisfação fica a lacuna de alguém que não estava em nenhuma daquelas redes, onde poderíamos entrelaçar os dedos e nos olharmos nos olhos pra que o Amazonas pudesse ser mais do que já é.
Um dia eu vou lembrar disso tudo... E vou chorar.




Texto e fotos
Por Fábio Feijão e Fagner Branco
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